'Quem ama não mata': o feminicídioblaze whatsapp1976 que ajudou a mudar a Justiça brasileira:blaze whatsapp

A socialite mineira Angela Diniz, ao centro

Crédito, Arquivo do processo

Legenda da foto, A socialite mineira Angela Diniz, no centro, foi assassinadablaze whatsapp1976

Durante o julgamento, Evandro Lins e Silva transformou o assassino, “humilhado às últimas consequências”,blaze whatsappvítima; e a vítima, que chamoublaze whatsapp“Vênus lasciva”,blaze whatsappré.

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“Senhores jurados, a mulher fatal encanta, seduz, domina…”, argumentou o advogadoblaze whatsappdefesa. “Às vezes, a reação violenta é a única saída”.

Enquanto Evandro Lins e Silva era advogadoblaze whatsappdefesa, Evaristoblaze whatsappMoraes Filho era oblaze whatsappacusação.

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“Jurados, esta moça já teve carrascos demais!”, suplicou Moraes.

“Absolvei-o (Doca), jurados, e tereis feito justiça”, rebateu Lins e Silva.

Acusadoblaze whatsappmatar Ângela Diniz, então com 32 anos, com quatro tiros à queima-roupa, Doca Street,blaze whatsapp40, foi condenado a dois anosblaze whatsappreclusão, com direito a sursis (dispensa do cumprimentoblaze whatsappuma pena, no todo oublaze whatsappparte).

Como já tinha cumprido maisblaze whatsappum terço da pena, o réu saiu do tribunal pela porta da frente, aplaudido pela multidão que acompanhou as 21 horasblaze whatsappjulgamento.

À época, até o escritor Carlos Drummondblaze whatsappAndrade e o cartunista Henfil protestaram contra a decisão dos jurados – cinco homens e duas mulheres. Por quatro votos a três, o júri praticamente absolveu o réu e condenou a vítima.

“Aquela moça continua sendo assassinada todos os dias eblaze whatsappdiferentes maneiras”, lamentou o poeta no Jornal do Brasil. “Estão quase conseguindo provar que Ângela matou Doca”, ironizou o cartunistablaze whatsappO Pasquim.

'Quem ama não mata'

O crime ocorreu na casablaze whatsappveraneioblaze whatsappÂngela Diniz na Praia dos Ossos, no balneárioblaze whatsappArmaçãoblaze whatsappBúzios (RJ), no dia 30blaze whatsappdezembroblaze whatsapp1976, e o julgamento, marcado pelo machismo tanto da defesa quanto da imprensa, gerou repercussão nacional.

Indignadas, mulheres escreveram faixas, assinaram manifestos, organizaram protestos. Chegaram a fazer vigília na porta do Fórumblaze whatsappCabo Frio.

“Em 1975, grupos feministas organizaram no Rioblaze whatsappJaneiro um seminário na Associação Brasileirablaze whatsappImprensa (ABI), que deu origem à primeira organização feminista institucionalizada do país, o Centro da Mulher Brasileira. Portanto, quando Ângela Diniz foi assassinada,blaze whatsapp1976, o movimento feminista já atuava no Brasil e, com o slogan ‘Quem Ama Não Mata’, demandava justiça pelo assassinatoblaze whatsappvárias mulheres por seus maridos”, relata a socióloga Jacqueline Pitanguy, coautora do livro Feminismo no Brasil: Memórias De Quem Fez Acontecer (Bazar do Tempo, 2022) e amigablaze whatsappÂngela Diniz.

“Não creio que Ângela se autoidentificasse como feminista. Ela não atuava no movimento, nem tinha igualdadeblaze whatsappgênero como bandeirablaze whatsappluta. No entanto, estava à frenteblaze whatsappseu tempo na pauta da moral e dos costumes e se sentia livre para se relacionar fora dos padrões convencionais da época. Essa liberdade era uma formablaze whatsappempoderamento da mulher”, observa a socióloga.

A Promotoria recorreu da sentença e um novo julgamento foi marcado. Heleno Fragoso substituiu Evaristoblaze whatsappMoraes Filho (acusação) e Humberto Telles entrou no lugarblaze whatsappEvandro Lins e Silva (defesa).

No dia 5blaze whatsappnovembroblaze whatsapp1981, Doca Street foi condenado a 15 anosblaze whatsappreclusão por homicídio qualificado. Mas só cumpriu três anos e meio da penablaze whatsappregime fechado.

“A atuação do movimento feminista foi fundamental para a condenaçãoblaze whatsappDoca Street e, também, para uma mudança cultural sobre crime e castigo no âmbito das relações entre homens e mulheres. No primeiro julgamento, não só a Justiça condenou a vítima, como a própria imprensa retratou Ângela como uma mulher que merecia ter sido assassinada porque seu comportamento não se enquadrava nos padrões da mulher recatada e do lar, prevalentes na sociedade”, afirma Jacqueline Pitanguy.

Fachada da casa, pintadablaze whatsappbranco, com duas janelas e porta ao centro

Crédito, Arquivo do processo

Legenda da foto, A casa onde ocorreu o crime,blaze whatsappfotografia anexada ao processo

Crime e castigo

De volta a 2023,blaze whatsappdecisão unânime e histórica, o STF entendeu que o argumento da legítima defesa da honra – classificado pelo ministro Dias Toffoli, relator do caso, como “odioso”, “desumano” e “cruel” – contraria os princípios constitucionais da igualdadeblaze whatsappgênero, da dignidade da pessoa humana e da proteção à vida e, por essa razão, proibiu seu uso, da investigação ao julgamento, por policiais, advogados e juízes.

Caso a tese seja usada,blaze whatsappforma direta ou indireta, o julgamento poderá até ser anulado.

“A teoria da legítima defesa da honra traduz a expressãoblaze whatsappvaloresblaze whatsappuma sociedade patriarcal, arcaica e autoritária”, declarou a presidente da corte, a ministra Rosa Weber.

“Uma sociedade machista, sexista e misógina que mata mulheres apenas porque elas querem ser o que são, donasblaze whatsappsua vida”, completou a ministra Cármen Lúcia, que relembrou o casoblaze whatsappÂngela Diniz durante seu voto.

A casa do crimeblaze whatsapp2019, pintadablaze whatsappamarelo

Crédito, Flora Thomson-DeVeaux

Legenda da foto, A casa do crime,blaze whatsappfotografiablaze whatsapp2019

Machismo mata

Ângela Diniz e Doca Street se conheceramblaze whatsappagostoblaze whatsapp1976, durante uma festa na casa dele,blaze whatsappSão Paulo. À época, Doca era casado com a milionária Adelita Scarpa e o casal tinha dois filhos.

Já Ângela era separada do ex-marido, o engenheiro Milton Villas Boas, e namorava o colunista social Ibrahim Sued, que a apelidoublaze whatsapp“A Panterablaze whatsappMinas”. Foi Ibrahim quem levou Ângela à casablaze whatsappAdelita.

Dois meses depois, Doca se separou da mulher e se mudou para o Rio. Lá, passou a viver no apartamentoblaze whatsappÂngela,blaze whatsappCopacabana, onde ela morava desde 1973.

“Por incrível que pareça, a vida malucablaze whatsappÂngela era adrenalina para mim. O piorblaze whatsapptudo é que eu era daqueles que achava que a vida sem uma grande paixão não valia a pena, e continuava garimpando até encontrar outra. Paixão? Perigo? Tem coisa melhor?”, escreveu Docablaze whatsappMea Culpa (2006).

No dia 30blaze whatsappdezembroblaze whatsapp1976, pouco antes do crime, Ângela e Doca voltaram a brigar. Mais uma das incontáveis brigas do casal. Na maioria das vezes, o motivo era um só: ciúmes.

Daquela vez, Doca estaria com ciúmesblaze whatsappGabriele Dyer, uma alemã que aparecerablaze whatsappBúzios havia alguns meses e ganhava a vida vendendo artesanato. Segundo algumas versões, ela teria sido a pivô da última briga do casal.

Durante a discussão, Ângela terminou o relacionamento e mandou Doca embora. Ele não aceitou e efetuou quatro disparos – três no rosto e um na nuca. Em seguida, abandonou a arma do crime, uma Beretta automática calibre 7,65 mm, e fugiu para Minas. Vinte dias depois, foi capturado numa clínicablaze whatsappTaboão da Serra (SP).

“Ângela Diniz foi morta porque Doca Street não aceitava o fim do relacionamento. Havia o sentimentoblaze whatsappposse. O crime ocorreublaze whatsapp1976, há 46 anos, mas o sentimentoblaze whatsappposse sobre as mulheres ainda vigorablaze whatsapptempos atuais. Homens não aceitam ‘perder’ a mulher, como se ela fosse um objetoblaze whatsappsua propriedade”, afirma a advogada Tammy Fortunato, autora do livro Feminicídio: Aspectos e Responsabilidades (Lumen Juris, 2023).

Em 30blaze whatsappdezembroblaze whatsapp1976, quando Ângela Diniz foi assassinada, o crimeblaze whatsappfeminicídio ainda não existia no Brasil. Passou a vigorar a partirblaze whatsapp9blaze whatsappmarçoblaze whatsapp2015, quando foi aprovada a Lei 13.104.

Desde então, assassinatosblaze whatsappmulheres, praticadosblaze whatsappcontextoblaze whatsappviolência doméstica, familiar ou íntimablaze whatsappafeto ou, ainda, provocados pela discriminação ou menosprezo à condição do sexo/gênero feminino, passaram a ser considerados hediondos, com penas que podem chegar a 30 anos.

Há agravantes, por exemplo se o feminicídio for cometido contra gestante ou com filho recém-nascido ou, ainda, praticado na presençablaze whatsappparentes da vítima.

“Se Ângela tivesse sido morta após o advento da Lei 13.104/2015, Doca responderia pelo crimeblaze whatsappfeminicídio, com uma pena maior, por ter sido cometidoblaze whatsappcontextoblaze whatsappviolência doméstica”, explica a advogada.

Cinco meses depois do crime, Gabriele Dyer desapareceu misteriosamente. Segundo relatoblaze whatsappuma testemunha, ela teria escorregado da Pedra da Ferradurinha,blaze whatsappBúzios, e caído no mar. Seu corpo nunca foi encontrado.

Retratoblaze whatsappBranca Vianna, que usa óculos, tem cabelo cacheado e veste camisa rosa

Crédito, Kevin Rodrigues

Legenda da foto, Branca Vianna, idealizadora e apresentadora do podcast Praia dos Ossos, que recontou a históriablaze whatsappAngela Diniz: “Como é que um homem mata uma mulher com quatro tiros na cara e vira herói?”

Triste recorde

Em 2022, o Brasil bateu recordeblaze whatsappfeminicídios: 1,4 mil mulheres foram mortas pelo simples fatoblaze whatsappserem mulheres – uma médiablaze whatsappuma mulher morta a cada seis horas.

É o maior número já registrado no país desde que a lei do feminicídio entroublaze whatsappvigor,blaze whatsapp2015.

O Estado com a maior taxablaze whatsappfeminicídio é Mato Grosso do Sul, com médiablaze whatsapp3,5 a cada 100 mil mulheres, e o estado com a menor taxa é o Ceará, com 0,6 a cada 100 mil mulheres.

Segundo o Anuárioblaze whatsappSegurança Pública do Fórum Brasileiroblaze whatsappSegurança Pública (FBSP), oitoblaze whatsappcada 10 casosblaze whatsappfeminicídio são cometidos pelo parceiro ou ex-parceiro da vítima.

O levantamento faz parte do Monitor da Violência, uma parceria do Núcleoblaze whatsappEstudos da Violência da Universidadeblaze whatsappSão Paulo (NEV-USP) e o FBSP.

“A violência doméstica sofrida por Ângela Dinizblaze whatsapp1976 é a mesma sofrida por tantas outras mulheresblaze whatsapp2023. A diferença é que,blaze whatsapptempos atuais, as mulheres têm mais informações sobre as mais variadas formasblaze whatsappviolência. Até pouco tempo, não havia delegacias especializadas no atendimento às mulheresblaze whatsappsituaçãoblaze whatsappviolência, o que dificultava registrar um boletimblaze whatsappocorrência, até mesmo pelo medo ou pela vergonha do julgamento da sociedade”, afirma Tammy Fortunato.

“Ângela não precisava se preocupar com dinheiro ou com a guarda dos filhos, mas não denunciou, nem procurou ajuda, o que era compreensível na época. Havia muito preconceito contra mulheresblaze whatsappsituaçãoblaze whatsappviolência doméstica. Não havia lei que as protegesse”, conclui a advogada.

Gabriel Braga Nunes e Isis Valverde

Crédito, Aline Arruda

Legenda da foto, Ísis Valverde (à direita) interpreta Ângela Diniz e Gabriel Braga Nunes (à esquerda), Doca Street, no filme 'Ângela'

Violência contra a mulher

O assassinatoblaze whatsappÂngela Diniz inspirou, entre outras produções, o filme Os Amores da Pantera,blaze whatsappJece Valadão, lançadoblaze whatsapp1977; o episódio Ângela e Doca, do programa Linha Direta Justiça, exibidoblaze whatsapp5blaze whatsappjunhoblaze whatsapp2003, e o podcast Praia dos Ossos, da Rádio Novelo, entre 12blaze whatsappsetembro e 31blaze whatsappoutubroblaze whatsapp2020.

Uma das motivaçõesblaze whatsappBranca Vianna, idealizadora e apresentadora do podcast Praia dos Ossos, foi responder a duas perguntas: “Como é que um homem mata uma mulher com quatro tiros na cara e vira herói?” e “Como uma mulher desarmada é morta com quatro tiros e vira a vilã da história?”.

“A conclusão a que cheguei é um tanto óbvia: ainda hoje, vivemos numa sociedade machista, misógina e patriarcal onde a dominação das mulheres pelos homens é vista como algo natural”, afirma Vianna.

“O Judiciário e a imprensa da época transformaram a Ângela na vilã da história. É como se ela tivesse provocado a própria morte. Se não fosse o Doca, ela teria sido assassinada por qualquer outro homem. Uma mulher que se comportava daquele jeito só podia terminar morta”.

Uma das 60 pessoas entrevistadas por Branca Vianna e Flora Thomson-DeVeaux, pesquisadora e coordenadorablaze whatsappprodução, foi o próprio Doca Street: “Eu amei a Ângela, como um louco. Coisa mais gostosa do mundo. Não interessa se a gente quebrava o paublaze whatsappvezblaze whatsappquando. Faz parte, né?”, disse ele, a certa altura, no sexto episódio.

“Em 2019, quando entrevistamos o Doca para o podcast, ele continuava com a mesma narrativablaze whatsapp40 e tantos anos atrás. Dizia que matou a Ângela porque a amava demais. Como se isso fosse algo possível”, relata Vianna.

Estáblaze whatsappcartaz também a o filme Ângela, escrito por Dudablaze whatsappAlmeida e dirigido por Hugo Prata. Ísis Valverde interpreta Ângela Diniz e Gabriel Braga Nunes, Doca Street.

“Quando você estáblaze whatsappum relacionamento tóxico, é difícil mesmo se livrar dele. O abuso não começa no assassinato. Há todo um ciclo. Primeiro, o abusador mina a vítima psicologicamente. Depois, culpa-a pelo modo abusivo como age. Em seguida, explica que só faz aquilo por amor. Por último, exclui a vítima do convívioblaze whatsappoutras pessoas”, adverte a atriz. “Mas, há um caminho: ligue 180. Você não está sozinha. Confie e acredite”.

No ano que vem, a históriablaze whatsappÂngela Diniz chegará ao streaming. A série Praia dos Ossos será dirigida por Andrucha Waddington e protagonizada por Marjorie Estiano.

O primeiro maridoblaze whatsappÂngela, Milton Villas Boas, morreublaze whatsapp1983,blaze whatsappum desastreblaze whatsappavião, e o filho caçula, Luiz Felipe,blaze whatsapp1988,blaze whatsappum acidenteblaze whatsappcarro. Os outros filhos do casal, Milton e Cristiana, moramblaze whatsappBelo Horizonte (MG).

Doca Street teve uma parada cardíaca e morreublaze whatsapp18blaze whatsappdezembroblaze whatsapp2020, aos 86 anos.