Como destruição do Cerrado é ofuscada por 'prioridade' à Amazônia:loto caixa
Ao todo, 110 milhõesloto caixahectares do bioma (49% do total) já foram destruídos, sendo substituídos pelo cultivo extensivoloto caixacommodities agrícolas, principalmente soja, milho, cana-de-açúcar e algodão, ou usado para extraçãoloto caixamatérias-primas voltadas à produção industrial.
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Enquanto o Cerrado bateu recordesloto caixadestruição nos primeiros cinco mesesloto caixa2023, o desmatamento na Amazônia Legal caiu 31% na comparação com o mesmo período do ano passado.
Foram 1.986 km²loto caixaárea desmatada entre janeiro e maio. Em termos absolutos, esse total representa quase metade do que foi registrado no Cerrado, sendo que a floresta no norte do Brasil tem quase o dobro da área da região savânica.
Especialistas afirmam que é necessário cautela ao interpretar os dadosloto caixadesmatamentoloto caixaépocasloto caixachuva, já que a alta coberturaloto caixanuvens pode aumentar o tempoloto caixadetecção dos alertasloto caixadesmatamento. Ainda assim, todos afirmam que a situação é preocupante.
A devastação da vegetação nativa para uso da terra por atividadesloto caixaagricultura, pecuária e mineração preocupa especialmente por suas consequências brutais para a dinâmica hídrica nacional e no cone sul do continente e, consequentemente, na produçãoloto caixaalimentos na região.
“O Cerrado é o bioma mais ameaçado do Brasil e talvez um dos mais ameaçados do mundo”, diz Yuri Salmona, geógrafo e diretor executivo do Instituto Cerrados, que explica que, por muitos anos, a Mata Atlântica esteve sobre grande risco, mas nas últimas décadas foi alvoloto caixafortes esforçosloto caixaconservação, ao contrário da árealoto caixasavana.
Segundo o pesquisador, é no período entre maio e junho que costumam ser registradas as maiores taxasloto caixadesmatamento no Cerrado, por conta do clima. “Ainda estamos entrando nesse período, o que significa que podemos esperar números ainda piores nos próximos meses.”
Legislação e áreasloto caixaconservação
Segundo os especialistas consultados pela BBC News Brasil, grande parte da discrepância entre os números mais recentesloto caixadesmatamento no Cerrado e na Amazônia pode ser explicada por leis mais permissivas na árealoto caixasavana.
Embora seja o segundo maior bioma da América do Sul, o Cerrado é o que tem a menor porcentagemloto caixaáreas sobre a proteção integral no país.
Enquanto o Código Florestal protege 80% da mata localizadaloto caixaáreas privadas na Amazônia contra o desmatamento, as reservas legais cobrem apenasloto caixa20% a 35% do Cerrado. Ou seja, a lei estabelece uma proporção quase oposta para os dois biomas.
Ao mesmo tempo, apenas 8,21% da área total da savana é legalmente protegida com unidadesloto caixaconservação (UCs), contra quase metade da floresta do norte.
“Historicamente, o Cerrado foi escolhido para morrer”, diz a ecologista Rosângela Azevedo Corrêa, professora da Universidadeloto caixaBrasília (UnB) e diretora do Museu do Cerrado, que classifica ainda a legislação como “desastrosa” para a ecorregião.
A especialista afirma que uma legislação mais permissiva no Cerradoloto caixarelação à Amazônia também não faz sentido do pontoloto caixavista científico, já que as duas áreas estão fortemente relacionadas e dependem uma da outra para sobreviver.
“Todos os rios da margem direita do Amazonas dependem da água das entranhas do Cerrado”, diz. “Se o Cerrado morrer, metade da Amazônia morre junto.”
O geólogo Yuri Salmona diz ainda que é preciso pensarloto caixapolíticas públicas para Amazônia e Cerrado juntos.
“Maisloto caixa80% do desmatamento no país acontece nesses dois biomas e a região onde se encontram os maiores índicesloto caixadesmatamento da Amazônia Legal compreende o bioma Cerrado”, afirma.
“Criar políticas públicas separadas pode deslocar o desmatamentoloto caixaum bioma para o outro, pois os responsáveis pela destruição buscam novas áreas para seguir com seus negócios.”
Iniciativasloto caixapreservação e vontade política
Há ainda, segundo os pesquisadores ouvidos pela reportagem, mais iniciativas voltadas para a proteção da Amazônia do que para o Cerrado, apesar da situação mais urgente da árealoto caixasavana.
"Sabemos que o novo governo Lula ainda está se estruturando e lidando com a faltaloto caixaestruturas e o desmonte promovido pelo governo anterior, mas até o momento se priorizou muito mais a Amazônia do que o Cerrado”, diz o diretor executivo do Instituto Cerrados.
“Temos esperançasloto caixaque isso possa mudar, mas precisamosloto caixademonstrações dessa vontade política logo.”
O geólogo afirma também que os números alarmantes dos últimos meses podem ser uma respostaloto caixaagricultores e pecuaristas ao novo governo, algo como uma “corrida” pelo desmatamento antes que novos mecanismosloto caixaproteção sejam instalados.
Já Rosângela Azevedo Corrêa vê as indicações dos ex-governadores Rui Costa (Bahia) e Flávio Dino (Maranhão) para, respectivamente, ministro da Casa Civil e ministro da Justiça, como um ato simbólico do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
“Bahia e Maranhão são dois dos Estados onde mais se continua destruindo o Cerrado e, ainda assim, dois ex-governadores foram nomeados ministros”, diz. “É por isso que do pontoloto caixavista político, os dadosloto caixadesmatamento recentes não surpreendem tanto.”
Dados do Inpe classificam os Estados do Tocantins eloto caixaGoiás como os responsáveis pelo maior incrementoloto caixadesmatamento acumulado nos últimos 20 anos. Eles são seguidos por Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais e Bahia.
“A invisibilidade do Cerrado se tornou política pública no Brasil, infelizmente”, diz Corrêa.
A professora da UnB acredita ainda que há faltaloto caixaconhecimento da sociedade brasileira sobre o Cerrado eloto caixasituação delicada, o que colabora para uma certa priorização da Amazônialoto caixadetrimento da savana.
“A população não conhece o Cerrado e, portanto, não luta para defendê-lo”, diz.
“Em umaloto caixaminhas pesquisas analisei 20 livros didáticos utilizados nas escolasloto caixaEnsino Fundamental do Distrito Federal e, quando muito, eles trazem uma página sobre o Cerrado, com uma ou outra foto do Lobo-guará e do Ipê-amarelo”.
Outro ponto levantado por especialistas é o fato do Cerrado não ser patrimônio nacional do Brasil, como a Amazônia, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal e a Zona Costeira.
Uma propostaloto caixaemenda para alterar a Constituição Federal e incluir o Cerrado e a Caatinga na listaloto caixapatrimônios está há 13 anosloto caixatramitação no Congresso. A PEC passouloto caixajaneiroloto caixa2023 pela Comissãoloto caixaConstituição e Justiça (CCJC) da Câmara dos Deputados e está pronta para ser votadaloto caixaPlenário.
“O fato do Cerrado não ser patrimônio enquanto quase todos os outros são é um sinal da predileção do Estado brasileiro, que reflete nas políticas nacionais”, diz a bióloga Nurit Bensusan, do Instituto Socioambiental (ISA).
Atenção internacional
Outro ponto apontado como significativo pelos pesquisadores é o baixo interesse despertado pela preservação do Cerrado fora do Brasil, especialmente quando comparado à atenção recebida pela Amazônia.
“Líderes internacionais quando vêm ao Brasil só visitam a Amazônia”, diz Rosângela Azevedo Corrêa, que cita as doações ao Fundo Amazônia, destinado à proteção e desenvolvimento da região, como consequência positiva da fama desse bioma no resto do mundo.
“Mas o governo brasileiro decidiu destinar apenas 20% do fundo para os demais biomas brasileiros. Ou seja, cinco biomas tendo que dividir essa parcela”.
Nurit Bensusan afirma que o interesse despertado e as campanhas massivas realizadas pela Amazônia por vezes deslocam as atividades econômicas - e consequentemente o desmatamento - para o Cerrado, já que os produtores e pecuaristas passam a buscar outras regiões para se desenvolver.
“Costumo dizer que o Cerrado é um bioma azarado, porque está no país com a maior floresta tropical do mundo, um dos ambientes mais devastados, que é a Mata Atlântica, e a maior planície úmida do planeta, o Pantanal”, diz.
Yuri Salmona cita ainda a atual legislação europeia que proíbe a venda no continenteloto caixaprodutos oriundosloto caixadesmatamentoloto caixaflorestas, mas permite a comercialização do que é fruto da destruição do Cerrado, como exemplo da faltaloto caixaapoio ao bioma.
A norma aprovada pela União Europeia (UE)loto caixaabril deste ano estipula que qualquer cultura que utilize local onde houve desmatamento ilegal, como na Amazônia, sofrerá sançõesloto caixacompra pelos países dao bloco.
A regulamentação oferece proteção à Amazônia, à Mata Atlântica e ao Chaco, os biomas tipicamente florestais da América do Sul, mas não trata do Cerrado.
“O Brasil precisa impulsionar acordos internacionais específicos que proíbam, por exemplo, o consumoloto caixasoja e outros produtos agropecuários que venham do desmatamento do Cerrado ou pelo menos pleitear uma revisão da lei aprovada na União Europeia”, diz. “Não faz sentido só importar as soluções usadas para a Amazônia.”
Abastecimento hídrico e produçãoloto caixaalimentos
Segundo especialistas, a destruição do Cerrado pode impactar diretamente na biodiversidade e no abastecimento hídrico não só do Brasil, comoloto caixaoutros países na região do Cone Sul.
O bioma é conhecido como "berço das águas" porloto caixaenorme capacidadeloto caixaabastecimento. Oito das 12 principais bacias hidrográficas brasileiras — como as dos rios São Francisco e Paraná — nascem no território do Cerrado, que é também o segundo maior bioma do país, só atrás da Amazônia.
“O Cerrado funciona com um distribuidorloto caixaáguas para várias bacias hidrográficas. Mas o processoloto caixaarmazenamento e distribuição hídrico depende da interação entre atmosfera, vegetação e solo”, explica Mercedes Bustamante, professora da Universidadeloto caixaBrasília (UnB).
Segundo a bióloga, que é hoje uma das principais referências no bioma Cerrado, além do impacto nas águas superficiais, a alteração da coberturaloto caixavegetação tem efeito direto também no retornoloto caixaágua para atmosfera pela transpiração das plantas.
“É por isso que diversos estudos consecutivos apontam que o Cerrado como um todo está se tornando mais seco e mais quente”, afirma.
"Estamos cortando várias conexões que fazem o sistema funcionar produzindo água para outros biomas.
Uma pesquisa realizada por Yuri Salmona com o apoio do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), mostrou que os rios do Cerrado perderam 15,4%loto caixasua vazãoloto caixaágua por causa do desmatamento e das mudanças climáticas entre 1985 e 2022.
A perspectivaloto caixafuturo também não é nada animadora: um terço do volumeloto caixaáguas (34%) tende a ser perdido até 2050 caso a destruição do bioma continue no ritmo atual.
E interferir no ciclo hidrográfico da região significa não só diminuir a ofertaloto caixaágua que chega nas torneiras da população brasileira, mas tambémloto caixapaíses como Argentina, Paraguai e Uruguai, segundo especialistas.
Isso porque o Cerrado é componente importante para o ecossistema do Rio Paraná, que é também o principal cursoloto caixaágua formador da Bacia do Prata, a segunda maior da América do Sul e a quinta maior do mundo, com aproximadamente 3,1 milhões km².
Compartilhada por Brasil, Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai, estima-se que cercaloto caixa50% da população desses cinco países se concentreloto caixaseu território.
Além disso, a bacia ainda alimenta o Aquífero Guarani, um reservatório subterrâneo capazloto caixaabastecer várias cidades no Brasil, na Argentina e no Uruguai.
"De 1985 para cá, nós perdemos 19,7 mil metros cúbicosloto caixaágua por segundo nas bacias analisadas, o equivalente à vazão do rio Paraná. É como se tivéssemos jogado fora o rio Paraná inteiro nesse período", explicou Salmona à BBC Brasil.
“Os aquíferos não se detém nas fronteiras. Ou seja, o impacto éloto caixatoda uma região do continente sul-americano”, diz Nurit Bensusan, do Instituto Socioambiental (ISA).
Os profissionais consultados pela reportagem afirmam ainda que o desmatamento do Cerrado e a diminuição da vazão da rede hídrica têm efeito direto na produçãoloto caixaalimentosloto caixatodas as áreas afetadas.
Além da dependência da água para irrigação das plantações, a agricultura e a pecuária são diretamente impactadas pela instabilidade climática e pela contaminação por agrotóxicos e outros resíduos deixados pelas atividades econômicas.
“À medidaloto caixaque se desmata para criaçãoloto caixanovas áreasloto caixaagricultura, o clima e a produçãoloto caixachuvas se tornam mais erráticos e a temperatura mais alta, alterando as condições que são importantes para a produçãoloto caixaalimentos”, diz Mercedes Bustamante.
E o Cerrado é considerado por muitos atualmente o “pilar da agricultura brasileira”.
Sozinho, o Brasil alimenta 900 milhõesloto caixapessoas por ano atualmente. O país tem hoje 79 milhõesloto caixahectaresloto caixaáreas plantadas, dos quais 36 milhões são dedicados à soja. Metade desse total está no Cerrado, onde o cultivoloto caixasoja avançou sobre 16,8 milhõesloto caixahectares nos últimos 36 anos.
“Desmatar o Cerrado é um tiro no pé do próprio setor agrícola”, resume Bustamante.
Biodiversidade
O Cerrado também tem um imenso valor para a diversidadeloto caixaespécies.
A ecorregião é responsável por um terço da biodiversidade do país, com maisloto caixa11 mil espécies identificadasloto caixaplantas, alémloto caixa837 espéciesloto caixaaves, 185loto caixarépteis, 194loto caixamamíferos, 150loto caixaanfíbios e 14.425loto caixainvertebrados.
Por tudo isso, é considerada a formação savânica mais biodiversa do planeta, compreendendo cercaloto caixa5% do total da biodiversidade mundial.
Mas um estudo publicadoloto caixa2017 na revista Nature mostrou que, se a trajetórialoto caixadesmatamento do bioma continuasse como naquele momento e nenhuma grande mudançaloto caixapolítica pública fosse implementada, uma extinção massivaloto caixaespécies poderia estar no horizonte.
Por fim, o Cerrado tem ainda uma capacidade incrívelloto caixaestocar carbonoloto caixasuas raízes profundas e no solo. Desmatar aloto caixavegetação, portanto, significa imediatamente emitir uma quantidade enormeloto caixagás carbônico e metano.
Atualmente, segundo Yuri Salmona, o desmatamento no Cerrado já emite mais CO2 que toda a indústria brasileira.
O que diz o governo?
À BBC News Brasil, o Secretário Extraordinárioloto caixaControleloto caixaDesmatamento e Ordenamento Ambiental Territorial do Ministério do Meio Ambiente, André Lima, afirmou que houve um aumento médioloto caixa100% nas açõesloto caixaautuação e fiscalização ambiental realizadas pelo Ibamaloto caixatodos os biomas do país.
Segundo ele, a fiscalização acontece “em um ritmo e volume muito mais intenso do que no mesmo período do ano passado” apesar do “sucateamento do Ibama pela gestão anterior”.
Lima disse também que uma parte importante dos casosloto caixadesmatamentoloto caixaEstados onde o Cerrado está concentrado, como por exemplo a Bahia, foram registrados no Sistema Nacionalloto caixaCadastro Ambiental Rural, cuja fiscalização é feita pelos governos estaduais.
“Estamos requerendo estas informações a todos os Estados, com foco no Cerrado, para entender o que é desmatamento legal e o que é ilegal e poder estruturar as próximas ações”, afirmou.
O secretário também disse que o governo trabalha a partir do que é estabelecido pela lei federalloto caixavigor desde 2012, sobre a qual não tem controle.
Além disso, segundo Lima, o governo planeja o PPCerrado, um planoloto caixaação dedicado exclusivamente ao bioma e elaborado a partirloto caixauma iniciativaloto caixaconsulta à sociedade civil e à Academia.
O secretário afirmou também à BBC Brasil que não tem conhecimentoloto caixainiciativas do governo brasileiro para influenciar a legislação europeia. “Não queremos que nenhum parlamento europeu se mobilize para mudar a legislação nacional, então não faremos o inverso”, disse.
“A obrigação do Estado brasileiro é implementar a legislaçãoloto caixaproteção da vegetação nativa no Brasil, que é o nosso Código Florestal. E vamos fazer isso sem prejuízo aos mecanismos e instrumentos econômicos que possam estimular o não desmatamentoloto caixaáreas passíveisloto caixasupressão pela legislaçãoloto caixavigor”, afirmou.
Segundo Lima, esse é o grande desafio para que se atinja a metaloto caixadesmatamento zero até 2030 assumida pelo Brasil.