As memórias do cárcererealsbet o que éum sobrevivente do Carandiru:realsbet o que é

"Um milagre? Por quê?", perguntou Sales, ainda esbaforido, arregalando os olhos.

"Vou escolher uma dessas chaves", começou a explicar o PM, engatilhando a escopeta calibre 12. "Se a chave abrir o cadeado da cela, você entra e vive. Se não abrir, você fica e morre aqui mesmo no corredor", avisou, apontando a arma para a cabeça do preso.

"Vamos executar você!", completou o outro agente da lei.

Naquela época, Sales ainda não acreditavarealsbet o que émilagres. Pelo sim pelo não, fechou os olhos com força e começou a rezar baixinho o único versículo bíblico que conhecia.

Uma semana antes,realsbet o que émãe, Maria da Conceição Sales, lhe enviara uma carta, onde copiou, a mão, o bendito salmo. Sales ainda recitava baixinho o texto sagrado quando ouviu o ruído do cadeado se abrindo.

Trinta anos depois, ele imita o barulho, estalando a língua.

"Minha mãe morreu há uns dois anos. Foi a maior perda que sofri na vida. Nunca desistiurealsbet o que émim. Sempre repetia: 'Mãerealsbet o que éjoelho e filhorealsbet o que épé'!", emociona-se.

Camporealsbet o que éconcentração

Em uma das últimas cenas do filme Carandiru (2003), dirigido pelo cineasta argentino Hector Babenco (1946-2016), Sales aparece lendo a carta da mãe.

No longa adaptado do livro Estação Carandiru (1999), escrito pelo médico Drauzio Varella, ele é interpretado pelo ator Robson Nunes e se chama Davidson, ou Dada, o craque do time do presídio.

O pastor evangélico Sidney Sales é um dos sobreviventes do Massacre do Carandiru, o maior da história do sistema carcerário brasileiro.

Estima-se que,realsbet o que éapenas 20 minutos, 111 presos foram mortos e outros 35 ficaram feridos durante uma operação da PM para conter uma rebelião.

Os números são da Secretariarealsbet o que éSegurança Público do Estadorealsbet o que éSão Paulo.

Do totalrealsbet o que émortos, 102 foram executados por armasrealsbet o que éfogo e nove por armas brancas.

Segundo estimativas extraoficiais, os númerosrealsbet o que émortos são ainda maiores. "111 é pouco. Morreram maisrealsbet o que é250. Muitos não tinham pai ou mãe para reclamar seus cadáveres", defende Sales.

Nenhum policial foi morto na operação.

"Peço desculpas a quem perdeu a família nos camposrealsbet o que éconcentração nazistas, mas só tinha visto aquilo nos filmes da Segunda Guerra Mundial. Carandiru foi meu Auschwitz", compara.

A hora da invasão

Paulistarealsbet o que éJundiaí, município a 57 km da capital, Sales chegou à Casarealsbet o que éDetenção do Carandiru, o maior complexo penitenciário da época na América Latina,realsbet o que é1989.

Tinha 19 anos quando foi presorealsbet o que éflagrante pela Polícia Federal por rouborealsbet o que écargarealsbet o que éOsasco e levado para o Departamentorealsbet o que éInvestigações sobre o Crime Organizado (Deic), o antigo Departamento Estadualrealsbet o que éInvestigações Criminais.

Condenado a quatro anosrealsbet o que éprisão, Sales foi transferido para o Pavilhão 9, que abrigava cercarealsbet o que é2,5 mil dos quase 8 mil detentos do Carandiru. Para lá, eram mandados os réus primários ou, no linguajar do presídio, os "cabeçasrealsbet o que ébagre". Os presosrealsbet o que émaior periculosidade ficavam no Pavilhão 8.

Dos 111 mortos no Carandiru, 88 (80% do total) eram presos provisórios. Ou seja, que ainda não tinham sido julgados pelos delitos que cometeram.

Minutos antes da invasão, Sales comemorava a vitória do Cascudinho, time que ajudou a fundar e no qual jogava como zagueiro, por 2 a 1.

Por voltarealsbet o que éuma e meia da tarde, ouviu dizer que Antônio Luiz Nascimento, o Barba, e Luiz Tavaresrealsbet o que éAzevedo, o Coelho, tinham se envolvido numa briga no segundo andar do pavilhão.

Até hoje, não se sabe ao certo o motivo do desentendimento. Dias antes, Barba tinha vendido fiado para Coelho. Como um não pagou o que devia, o outro resolveu cobrar a dívida.

Os carcereiros ainda tentaram apartar a briga, mas os detentos não deixaram. Segundo a lei da cadeia, uma briga entre líderesrealsbet o que éfacções só termina quando um dos dois morre.

Nenhum deles morreu, mas ambos ficaram feridos. Coelho foi transferido para o ambulatório, no Pavilhão 4. Já Barba demorou a ser socorrido pelos agentes penitenciários.

As facções, espumandorealsbet o que éódio, declararam guerra entre si. Na confusão, atearam fogo na marcenaria. As chamas se espalharam e chegaram à cozinha. Houve explosãorealsbet o que égás.

Com um megafone, o diretor do presídio, José Ismael Pedrosa (1935-2005), tentou acalmar os ânimos. Não conseguiu. Foi quando pediu ajuda à PM para controlar a situação.

O então secretáriorealsbet o que éSegurança Públicarealsbet o que éSão Paulo, Pedro Francorealsbet o que éCampos, autorizou a entrada dos policiais militares sob o comando do coronel Ubiratan Guimarães (1943-2006).

Com a repercussão negativa do caso, Campos deixou o cargo seis dias depois da operação.

Participaram da intervenção, além da Troparealsbet o que éChoque, as Rondas Ostensivas Tobiasrealsbet o que éAguiar (Rota), o Comandorealsbet o que éOperações Especiais (COE) e o Gruporealsbet o que éAções Táticas Especiais (Gate).

Não havia reféns no Pavilhão 9. Todos os 20 carcereiros, diante da iminente explosão da panelarealsbet o que épressão, deram no pé.

Barrilrealsbet o que épólvora

A ordem para invadir o Carandiru foi dada às quatro e meia da tarde. À medida que os policiais entravam, armadosrealsbet o que éfuzis, metralhadoras e escopetas, os presos, munidosrealsbet o que épaus, estiletes e facões, fugiam, acuados, para os andares superiores.

Os detentos ainda improvisaram uma barricada com móveis e colchões. Mas,realsbet o que énada adiantou.

À princípio, Sales achou que os policiais estivessem usando balasrealsbet o que éborracha. Mas, quando o cheirorealsbet o que épólvora se espalhou pelo ar, viu que estava enganado.

Ele e outros presos tentaram procurar abrigorealsbet o que éuma caixa d'água no telhado do prédio, mas o rasanterealsbet o que éum helicóptero da polícia cuspindo bala os obrigou a voltar para dentro do pavilhão.

No quinto andar, o grupo se trancourealsbet o que éuma das celas. Um policial abriu o guichê (a abertura na portarealsbet o que éferro) e efetuou disparos a esmo. Um ricocheteou na parede e atingiu a nucarealsbet o que éum preso chamado Estevão. Morreu na hora.

Do ladorealsbet o que éfora, o policial perguntou quantos presos havia na cela e,realsbet o que éseguida, ordenou que todos tirassem as roupas e saíssem.

No corredorrealsbet o que épouco maisrealsbet o que édois metrosrealsbet o que élargura, Sales se deparou com dezenasrealsbet o que écorpos amontoados no chão. Muitos estavamrealsbet o que ébruços, com marcasrealsbet o que étiro à queima-roupa. Outros, ainda vivos, gemiamrealsbet o que édor ou gritavam por socorro.

Perto da escada que levava para o quarto andar, os policiais improvisaram um corredor polonês e agrediram os presos a golpesrealsbet o que écassetete. Alguns eram arremessados no poço do elevador.

Dos 111 mortos, 78 foram executados no segundo andar. Quinze morreram no primeiro andar, 10 no quarto e oito no terceiro.

Queimarealsbet o que éarquivo

Terminada a operação, os policiais recrutaram alguns presos para recolher os corpos. Sales foi um deles.

Enquanto um detento segurava os braços, o outro carregava as pernas. Muitos presos, para escapar da morte, se fingiramrealsbet o que émortos. Sales calcula ter transportado cercarealsbet o que é30 corpos. Empilhados num canto do pátio, os cadáveres eram removidos, atravésrealsbet o que érabecões, para o Instituto Médico Legal (IML).

Na madrugada do dia 3, os funcionários do IML não tiveram descanso. Os corpos não paravamrealsbet o que échegar ao necrotério. Dos 515 tiros disparados pelos PMs, 254 foram no peito e 126 na cabeça dos presos. Outros 135 foram desferidos nos membros inferiores.

Os peritos identificaram ainda sinaisrealsbet o que éespancamento erealsbet o que émordidasrealsbet o que écães no corpo das vítimas.

Sales estava transportando os últimos corpos quando se deu contarealsbet o que éque um deles estava, havia pouco tempo, fazendo o mesmo serviço. "É queimarealsbet o que éarquivo", pensou. "Serei o próximo!".

Largou o homem ali mesmo e correu para o quinto andar. Foi quando deurealsbet o que écara com os PMs que decidiramrealsbet o que ésorte com a argolarealsbet o que échaves.

De volta ao crime

Um dia depois do massacre, Sales foi transferido para Mirandópolis, uma penitenciária no interior do Estado, onde terminourealsbet o que écumprirrealsbet o que épena. Em 1993, ganhou a liberdade, mas, negro, dependente químico e semianalfabeto, demorou para arranjar emprego. Bateurealsbet o que émuitas portas, mas nenhuma delas se abriu.

"Quando saí da prisão, tinha o Ensino Médio incompleto. As empresas exigiam Word, Excel, Power Point... Não fazia ideia do que era isso. O máximo que eu tinha era um diplomarealsbet o que édatilografia".

Passados seis meses, Sales voltou a participarrealsbet o que éroubos e assaltos. Pior: começou a beber e a consumir drogas.

Em um confronto com a polícia, levou seis tiros e foi parar numa cadeirarealsbet o que érodas. Conclusão: mais dois anosrealsbet o que éprisão,realsbet o que éregime fechado.

"A Lei Áurea foi assinada pela Princesa Isabel, mas ainda não entrourealsbet o que évigor no Brasil. Eles não libertaram os negros. Apenas trocaram a escravidão pelo encarceramento".

Segunda chance

Hoje, Sidney Sales morarealsbet o que éVárzea Paulista, no interiorrealsbet o que éSão Paulo, e administra, ao lado da mulher, Adriana, quatro centrosrealsbet o que éacolhimento para pessoasrealsbet o que ésituaçãorealsbet o que érua e duas clínicasrealsbet o que éreabilitação para usuáriosrealsbet o que édrogas. Neles, oferece, entre outras, oficinasrealsbet o que écostura, panificação e agricultura.

Por suas instituições, já passaram maisrealsbet o que é5 mil pessoas. Atualmente, são 150. Não satisfeito, ele ainda dá emprego para outras 50, todas com carteira assinada.

"Sou mais um ex-detento que virou pastor no Brasil. Sabe por que isso acontece? Porque a porta da igreja é a única que se abre para quem saiu da prisão e está à procurarealsbet o que éuma segunda chance".

Em 2007, Sales publicou Paraíso Carandiru — A História do Homem que, Levado ao Inferno, Encontrou a Porta do Céu. No momento, rascunha seu segundo livro, ainda sem título definido.

"No primeiro, falo do meu passado. No segundo, do meu presente. Meu passado me condena, eu sei. Mas, meu presente me absolve."

Entre outros temas, Sales dá palestra sobre dependência química e ressocializaçãorealsbet o que épresosrealsbet o que écolégios, universidades e presídios.

Em 2019, participou do Brazil Conference Harvard & MIT,realsbet o que éBoston, a capitalrealsbet o que éMassachusetts (EUA).

Ao ladorealsbet o que éMaria Laura Canineu, a representante do Human Rights Watch, erealsbet o que éFlávio Dino, o governador do Maranhão, integrou o painel sobre Transformação do Sistema Carcerário Brasileiro.

"Dizem que bandido bom é bandido morto. Discordo. Bandido bom é bandido ressocializado. O problema é que o Estado não ressocializa ninguém. Quem cumpre esse papel são as instituições filantrópicas."

Triste recorde

No anorealsbet o que éque o Massacre do Carandiru completa três décadas, o sistema prisional brasileiro atinge um recorde histórico: 919,6 mil presos — 867 mil homens e 49 mil mulheres.

É, segundo o Conselho Nacionalrealsbet o que éJustiça (CNJ), a maior população carcerária já registrada no país.

"Trinta anos depois, nada mudou. Pelo contrário. Piorou. Nosso sistema penitenciário faliu. Dentro dos presídios, o Estado não existe. São as facções criminosas que tomam conta das carceragens no país."

Um levantamento do World Prison Brief (WPB), órgão do Institutorealsbet o que éPesquisarealsbet o que éPolítica Criminal da Universidaderealsbet o que éLondres (ICPR, na siglarealsbet o que éinglês), revela que o Brasil ocupa hoje a terceira posição no ranking dos países com maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos EUA (2 milhões) e da China (1,6 milhão). São 434 presos por cada 100 mil habitantes.

A situação carcerária no Brasil só não é ainda pior porque 352 mil mandadosrealsbet o que éprisão, 24 milrealsbet o que éforagidos, continuamrealsbet o que éaberto. Caso contrário, o totalrealsbet o que éencarcerados já teria chegado a 1,2 milhãorealsbet o que épessoas.

"O sistema carcerário brasileiro é, para dizer o mínimo, uma calamidade. Mesmo assim, não desistirealsbet o que ésonhar. Quero prisões mais humanizadas, daquelasrealsbet o que éque os presos saemrealsbet o que élá com uma profissão. No Maranhão, por exemplo, os detentos plantam legumes e verduras para creches e escolas. Quando o governador me contou, não acreditei. Achei que estivesse mentindo. Tive que ver com meus próprios olhos para acreditar."

O país da impunidade

Até hoje, nenhum dos 340 policiais que invadiram o Carandiru foi preso. Entre 2013 e 2014, 74 deles foram condenados a penasrealsbet o que éaté 624 anosrealsbet o que éprisão. Mas, o julgamento foi anulado pelo Tribunalrealsbet o que éJustiçarealsbet o que éSão Paulo (TJ-SP)realsbet o que é2016. "Não houve massacre. Houve legítima defesa", declarou um desembargador.

Em 2021, o caso sofreu nova reviravolta: uma decisão unânime do Superior Tribunalrealsbet o que éJustiça (STJ) manteve a condenação dos 74 PMs.

Em 2001, o coronel da reserva Ubiratan Guimarães foi condenado a 632 anosrealsbet o que éprisão pela morterealsbet o que é102 dos 111 presos. Com direito a recorrer da penarealsbet o que éliberdade, o comandante da invasão foi eleito deputado estadualrealsbet o que é2002, com 56 mil votos pelo antigo PPB, o Partido Progressista Brasileiro.

Foi absolvidorealsbet o que éfevereirorealsbet o que é2006 por decisão do TJ-SP.

Em 10realsbet o que ésetembrorealsbet o que é2006, o Coronel Ubiratan foi encontrado mortorealsbet o que éseu apartamento nos Jardins. Acusadarealsbet o que ésua morte,realsbet o que énamorada, a advogada Carla Cepollina, foi absolvida por faltarealsbet o que éprovas.

No muro do prédio onde ele morava, picharam a frase: "Aqui se faz, aqui se paga".

Quem também morreu assassinado foi o antigo diretor do Carandiru, José Ismael Pedrosa.

Aposentado desde 2003, foi executado com dez tiros ao volanterealsbet o que éseu Honda Civicrealsbet o que éuma emboscada no dia 23realsbet o que éoutubrorealsbet o que é2005. Não andavarealsbet o que écarro blindado, nem tinha proteçãorealsbet o que éescolta.

O crime foi cometido por integrantes do Primeiro Comando da Capital (PCC), a maior facção criminosa do país. Os assassinos receberam penas que variaramrealsbet o que é14 a 19 anosrealsbet o que éprisão.

Quatro anos antes,realsbet o que éfilha, a médica Eulália Pedrosa Almeida, fora sequestradarealsbet o que éTaubaté, no interiorrealsbet o que éSão Paulo. Em vezrealsbet o que éresgate, os sequestradores pediram a solturarealsbet o que élíderes do PCC.

Em 42 horas, a polícia estourou o cativeirorealsbet o que éSão Vicente, resgatou a vítima e prendeu três sequestradores.

"Não consigo mais ter raivarealsbet o que éninguém. Mas reconheço o quanto eles foram incompetentes. Não souberam administrar a situação. Poderiam ter simplesmente cortado o fornecimentorealsbet o que éágua, luz ou comida. Teríamos nos rendidorealsbet o que édois ou três dias. Se tivessem feito isso, não teria acontecido aquela carnificina".

- Este texto foi publicado originalmente em http://roberthost1.accountsupport.com/brasil-63069128

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